O caso Miguel Otávio, o racismo estrutural e o dano moral coletivo sob ótica do TST

Carla Reita Faria Leal e Solange de Holanda Rocha

No último dia 29 de junho, a 3ª Turma do Tribunal Superior do Trabalho (TST) manteve a condenação do ex-prefeito do Município de Tamandaré (PE), Sergio Hacker, e de sua esposa, Sari Corte Real, ao pagamento de 386 mil reais a título de indenização por danos morais coletivos. Vale recordar que o citado casal ficou conhecido depois da morte trágica do menino Miguel Otávio, em 02 de junho de 2020, aos 5 anos de idade, quando caiu de um prédio no Recife, depois de ser deixado sozinho no elevador pela dona do imóvel, que empregava a mãe e a avó da criança. Em razão da pandemia, a mãe de Miguel não podia deixá-lo em escola ou creche e teve de levá-lo para o local trabalho, um apartamento no quinto andar de um edifício residencial. As imagens de uma câmera de segurança mostraram a conduta da empregadora, no mínimo, imprudente, apertando um botão do elevador, indo embora e deixando o menino que procurava por sua mãe, que havia saído para levar o cachorro da família para passear por determinação da patroa. No nono andar, ele subiu num parapeito de alumínio, que não resistiu ao seu peso, e caiu de uma altura de 35 metros. A partir das notícias sobre o caso, o Ministério Público do Trabalho (MPT) instaurou uma investigação e constatou diversas irregularidades na situação das empregadas domésticas da família. Além de exigir que elas trabalhassem durante a pandemia, os empregadores pagavam os salários com recursos da Prefeitura de Tamandaré, o que configura fraude contratual e desvio de recursos públicos. Com base no resultado das apurações, o MPT ajuizou a ação civil pública, sustentando a violação de direitos trabalhistas básicos e a prestação de serviços domésticos em total contrariedade às normas de saúde pública. Além do pedido de condenação dos réus em registrar os contratos de trabalho doméstico e pagar as verbas devidas, o MPT postulou indenização por dano moral coletivo no valor de R$ 2 milhões. A despeito de deferida, a indenização por danos morais coletivos foi fixada, desde a sentença proferida pelo juízo de primeira instância, mantida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 6ª Região (PE), e posteriormente pelo TST, no importe de 386 mil reais, como mencionado. Frise-se que tal condenação não exclui o pagamento de indenização em favor das trabalhadoras, pois os valores referentes às ações de natureza coletiva, a exemplo da ação em comento, devem ser revertidos a um fundo especial com destinação social ou a um projeto social específico. É importante destacar alguns fundamentos adotados no julgamento do TST. Inicialmente, o Relator, Ministro Alberto Bastos Balazeiro, salientou a diferença entre os casos já analisados pelo Tribunal, envolvendo relações de trabalho em estabelecimentos comerciais, e as relações de trabalho doméstico. Isto porque a violação de direitos, nas relações domésticas, tem como origem comum o padrão discriminatório estrutural que conduz à percepção social de que essas trabalhadoras não podem ser titulares de direitos. Sob essa ótica, as irregularidades praticadas atingem toda a sociedade porque mobilizam a engrenagem do racismo estrutural e institucional no que concerne à sistêmica negação de direitos trabalhistas das mulheres pertencentes à categoria de domésticas. Em outras palavras, os fatos se amoldam ao contexto da divisão racial do trabalho, a qual estão submetidas as trabalhadoras domésticas, notadamente mulheres negras, até os limites no curso da história, inclusive durante o período de grave crise sanitária. Ademais, assinalou que o nefasto acidente, que vitimou o filho da trabalhadora, enquadra-se, pesarosamente, no que a Convenção n.º 190, da OIT, qualifica como violência no mundo do trabalho com severos danos físicos e psicológicos. Em reforço, o ministro Mauricio Godinho Delgado classificou o caso como chocante e desumano, acrescentando que  “Lamentavelmente, as elites brasileiras, mesmo após quase 400 anos de escravidão, não retiraram a escravidão dos seus corações e das suas mentes e, por isso, reproduzem o racismo estrutural nas instituições, nas práticas cotidianas e na sociedade civil”. A resposta do Tribunal também foi considerada inédita porque o Relator analisou o processo com base na Resolução n.º 492/2023 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que tornou obrigatória a adoção pela magistratura brasileira do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero (Portaria CNJ n.º 27/2021). As balizas previstas no Protocolo consideram que às mulheres e às trabalhadoras são atribuídos diversos papeis sociais, os quais, em regra, as colocam ora em condições de subalternidade, ora de desvalorização social do seu trabalho. Segundo o Protocolo, o patriarcado, o racismo e as demais opressões influenciam a atuação do Poder Judiciário, ao qual cabe rever seus valores para romper com a aplicação do direito para a manutenção dos privilégios das estruturas dominantes, em detrimento de uma justiça substantiva. Esperamos que esse entendimento seja disseminado em nosso Poder Judiciário, de forma que este continue agir firmemente para que casos como o do menino Miguel Otávio não se repitam.

*Carla Reita Faria Leal é líder do Grupo de Pesquisa sobre o meio ambiente de trabalho da UFMT, o GPMAT.

*Solange de Holanda Rocha é procuradora federal e professora universitária

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