A jornada exaustiva como violação a direito humano e fundamental

Carla Reita Faria Leal e Daiani Dela Justina

No contexto atual, a jornada exaustiva tornou-se frequente e a sociedade passou a ser conhecida, segundo o filósofo coreano Byung-Chul Han, como a sociedade do cansaço. Nesta sociedade verifica-se a exaustão como fato natural; a autocobrança; a violência da positividade; a exposição excessiva a informações; o esgotamento mental; a cobrança alta produtividade; e a concepção de empreendedor de si mesmo. Tudo isso leva as pessoas ao esgotamento profissional, com reflexos em sua saúde física e mental. A Constituição Federal de 1988 traz entre os seus fundamentos a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho, ao mesmo tempo que estabelece uma série de direitos trabalhistas, os quais adquiriram status de direitos fundamentais, dentre eles, a limitação da jornada de trabalho, isso quando fixa como jornada ordinária aquela com oito horas diárias e quarenta e quatro horas semanais. Além disso, tem-se o artigo 149 do Código Penal (CP) que estabelece a jornada exaustiva como um dos meios de execução do crime de submissão a condições análogas à de escravo. Segundo a Portaria n.º 1.293 de 2017, do Ministério do Trabalho, a “jornada exaustiva é toda forma de trabalho, de natureza física ou mental, que, por sua extensão ou por sua intensidade, acarrete violação de direito fundamental do trabalhador, notadamente os relacionados à segurança, saúde, descanso e convívio familiar e social”. Entretanto, verifica-se que não há uma unanimidade quando se trata do enquadramento no tipo penal do artigo 149 do CP, pois há uma margem de discricionariedade e subjetividade que possibilita manobras interpretativas e semânticas trazendo uma interpretação mais restritiva do conceito de jornada exaustiva, o que vai de encontro com o princípio da dignidade humana. Assim, muitas vezes, reconhece-se a jornada exaustiva como ofensa a um direito fundamental, como descumprimento de normas de saúde e segurança no trabalho, mas não como forma de submissão a condição análoga à escravidão. Além disso, expressões como jornada extenuante, jornada desgastante, jornada excessiva e jornada degradante são utilizadas em vez de jornada exaustiva, possivelmente como forma de afastar a incidência do artigo 149 do Código Penal. Como exemplo, tem-se a ação civil pública (0000813-61.2017.5.23.0003), proposta pelo Ministério Público do Trabalho de Mato Grosso contra uma empresa de transportes, em que, por meio de relatório de inspeção de auditores fiscais do trabalho, contatou-se casos de motoristas trabalhando por 30 dias consecutivos sem repouso e de motoristas que chegavam a fazer 45 horas extras mensais. Na sentença a magistrada reconheceu “(…) que das sentenças coligadas ao feito pelo Ministério Publico do Trabalho resta claro a jornada excessiva, bem como o pagamento do salário por fora” e condenou a empresa em danos morais coletivos: “no caso em comento, a Reclamada desrespeitou normas mínimas da saúde dos trabalhadores, uma vez que ao descumprir normas atinentes à jornada, expõe os motoristas a riscos de vida (…)”. Em sede recursal, o Tribunal Regional do Trabalho da 23ª Região constatou que “a Requerida realmente desrespeitou normas mínimas de saúde e segurança, colocando em risco a vida dos seus motoristas e de todos os demais usuários das rodovias, práticas que, evidentemente, caracterizam dano moral coletivo indenizável, notadamente pela ofensa à essência da coletividade, à dignidade humana e ao valor social do trabalho”. Verifica-se, assim, a utilização da expressão jornada excessiva e o desrespeito a normas de saúde e segurança, mas não de jornada exaustiva e de condição análoga à de escravidão. Constata-se, desta feita, a necessidade da construção de uma jurisprudência constitucionalmente adequada e de uma definição mais precisa do conceito de jornada exaustiva, enquanto elemento de identificação do trabalho escravo contemporâneo, a fim de afastar a subjetividade hoje adotada quando se trata do tema. Em contraponto, tem-se recente notícia de que no Brasil haverá teste para semana de 04 dias de trabalho, uma iniciativa da organização 4 Day Week, em parceria com a ONG brasileira Reconnect Happiness at Work, que acontecerá entre junho e dezembro de 2023 com o objetivo de desmistificar a crença de que a produtividade é proporcional ao número de horas trabalhadas. Sempre bom lembrar que a busca pela limitação da jornada de trabalho em 8 horas diárias sempre foi uma reivindicação dos movimentos trabalhistas desde o surgimento do direito do trabalho, o que veio a ser garantido nos dispositivos legais nacionais e internacionais, mas não na prática para diversos trabalhadores. Esperemos que, além de serem garantidas as jornadas estabelecidas legalmente, avancemos para uma semana de quatro dias de trabalho, isso com o objetivo de garantir a saúde, principalmente a mental para os trabalhadores, assim como para concretizar o famoso brocado popular: “trabalhar para viver e não viver para trabalhar”.  

*Carla Reita Faria Leal e Daiani Dela Justina são membros do Grupo de Pesquisa sobre meio ambiente do trabalho da UFMT, o GPMAT.

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