ESCRAVOS SEM GRILHÔES: COLONIALIDADE, NORMALIZAÇÃO DA DEGRADÂNCIA E LEGITIMAÇÃO DO TRABALHO ESCRAVO EM CORTES TRABALHISTAS

TRABALHO ESCRAVO CONTEMPORÂNEO

INTRODUÇÃO:

Luiz se alimentava em um “refeitório imundo, com presença de larvas”, e consumia água na qual foram encontrados animais mortoso. Bruno, rural palmar, trabalhava em “condições bastante precárias de higiene […], com tenda de lixo a céu aberto e alojamentos em condições notoriamente desumanas”. Ainda assim, embora as condições de trabalho de Luiz e Bruno tenham sido consideradas degradantes por um Juiz do Trabalho, não foi reconhecida a sua submissão ao trabalho escravo contemporâneo. Paulino, José Arnaldo e Valter não tinham acesso a sanitário durante a jornada. Paulino, gari, recebeu R$5.000,00 de indenização pelo trabalho em condições degradantes. José Arnaldo, maquinista, recebeu três vezes mais (R$15.000,00) pelo labor nas mesmas condições. No caso de Valter, a ausência de sanitários foi julgada aceitável e típica da atividade rural desenvolvida.

O que faz casos aparentemente tão semelhantes serem sentenciados de forma tão diferente? Esse questionamento sempre inquietou as autoras deste artigo, que ora se propõem a enfrentá-lo. O presente estudo, assim, investiga as discrepâncias entre casos aparentemente análogos, buscando compreender como a Justiça do Trabalho tem analisado casos de trabalho degradante de trabalhadores rurais e urbanos.

O Brasil adota um conceito legal de trabalho escravo amplo e ímpar, construído com lastro no princípio da dignidade da pessoa humana. Ao lado de outros meios de execução, o art. 149 do Código Penal reconhece as condições degradantes de trabalho como análogas as de escravo – conceito este que não encontra equivalentes em outros ordenamentos jurídicos. Este modelo é reconhecido pelas Nações Unidas e pela Organização Internacional do Trabalho como exemplar, e um paradigma para balizar outros países no combate ao trabalho escravo (ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, 2011; INTERNATIONAL LABOR ORGANIZATION, 2005; 2009, p. 19-22)


No âmbito interno, porém, 18 anos após a alteração legislativa que mencionado artigo sofreu, o conceito de trabalho análogo ao de escravo ainda encontra resistência. Em 2017, o Governo Federal Publicou uma portaria restringindo o conceito de escravidão contemporânea e, consequentemente, reduzindo as hipóteses de sua incidência (INTERNATIONAL LABOR OGANIZATION, 2017). Uma decisão judicial suspendeu a medida, mas a ameaça permanece, já que vários projetos de lei continuam objetivando a desconstrução do conceito legal (FINELI, 2016; GARBELLINI FIHO; BORGES, 2017; PIOVESAN; CARVALHO, 2017). Ao lado disso, decisões de diversos tribunais condicionam o reconhecimento de trabalho escravo à demonstração de restrição ao direito de liberdade (PEREIRA, 2019; MIRAGLIA, 2017; PAES, 2017; HADDAD, 2017; MELO, 2009).


O papel que o Poder Judiciário Trabalhista ocupa no cenário de resistência à aplicação do conceito legal de trabalho escravo, porém ainda é pouco estudado. Algumas pesquisas trouxeram contribuições relevantes sobre aspectos criminais da condição análoga à escravidão (HADDAD, 2017; REIS NETO; BARP, 2014) e sobre a prática de auditores na identificação do trabalho escravo (SCOTT; BARBOSA; HADDAD, 2017). Paixão e Barbosa (2015) analisaram decisões em ações coletivas. Miraglia também explorou os julgamentos proferidos pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), com o objetivo de compreender como este tribunal conceitua o trabalho escravo contemporâneo. Haddad, Miraglia e Silva realizaram importante mapeamento, preponderantemente quantitativo, de sentenças penais e trabalhistas relativas ao trabalho análogo ao escravo. No âmbito do sistema da Justiça do Trabalho, contudo, foram analisadas apenas as ações civis públicas (HADDAD; MIRAGLIA; SILVA, 2020). Muller (2021), por seu turno, explorou 9 julgados trabalhistas e realizou entrevistas na investigação da representação judicial do conceito. Como tais estudos envolvem casos isolados, não sendo representativos de um panorama amplo, persiste um importante hiato acadêmico quanto ao lugar que a Justiça do Trabalho ocupa no debate acerca do trabalho escravo contemporâneo no Brasil (HEDWARDS; BALES; SILVERMAN, 2018), em especial no julgamento das ações individuais promovidas por vítimas. É esta lacuna que a presente pesquisa pretende colmatar. O estudo é especialmente importante porque compreender a dinâmica dos julgamentos da Justiça do Trabalho em casos em condições degradantes é essencial para o desenvolvimento de um sistema mais eficaz de prevenção e repressão.

Aline Fabiana Campos Pereira
Carla Reita Faria Leal

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